domingo, 27 de abril de 2008

Pierre Bourdieu IV

"É a raridade do produtor (isto é, a raridade da posição que ele ocupa em seu campo) que faz a raridade do produto. Como explicar, a não ser pela fé na magia da assinatura, a diferença ontológica - comprovada do ponto de vista econômico - entre a réplica assinada pelo próprio mestre (este múltiplo antecipado) e a cópia ou falsificação? Já é conhecido o efeito que uma simples troca de atribuição pode exercer sobre o valor econômico e simbólico de um quadro. O mesmo é dizer, de passagem, que o poder de transmutação não pertence somente ao produtor das obras (e que este não o obtém por si mesmo): o campo intelectual e o campo artístico constituem o espaço de lutas incessantes a propósito das obras do presente e do passado que enfrentam, ao mesmo tempo, o desafio da reviravolta da hierarquia dos produtores correspondentes e a alta das 'ações culturais' daqueles que investiram (no duplo sentido) em suas obras.
As estratégias de comercialização da grife são a melhor demonstração do quanto é inútil procurar apenas na raridade do objeto simbólico, em sua unicidade, o princípio do valor deste objeto que, fundamentalmente, reside na raridade do produtor. É produzindo a raridade do produtor que o campo de produção simbólico produz a raridade do produto: o poder mágico do criador é o capital de autoridade associado a uma posição que não poderá agir se não for mobilizado por uma pessoa autorizada, ou melhor ainda, se não for identificado com uma pessoa e seu carisma, além de ser garantido por sua assinatura. O que faz com que os produtos sejam Dior não é o indivíduo biológico Dior, nem a maison Dior, mas o capital da maison Dior que age sob as características de um indivíduo singular que só pode ser Dior."

C´est fini.

Pierre Bourdieu III



Chanel se esconde na sua famosa escada de espelhos do apartamento em Paris para espiar seu desfile, ignorando que Frank Howat registrou o momento. 1958

"É essa contradição que faz surgir Ramon Esparza, sucessor de Gaston Berthelot à sucessão de Chanel, quando ele exige plenos poderes "incluindo o de falar quando tiver vontade". Falar, isto é, existir como pessoa e obter os meios para se tornar uma personagem com uma marca, palavras, manias, em suma, tudo o que compunha Chanel, o carisma de Chanel, e que nos força a formular a pergunta: Como será possível substituir Chanel? Exatamente o que os jornalistas, que haviam contribuído para a produção da crença coletiva, descrevem retrospectivamente com um objetivismo redutor:
"Privado de sua vedete, o cenário perdeu toda sua magia. No fundo, todo este verniz preto e ouro era um pouco sinistro, e essas corças de bronze - dignas de figurarem nas salas do museu Petit Palais - representam justamente o notável pesar da felicidade de ter cachorros. Mas Chanel detestava cachorros. Trancamos a porta e, à nossa frente, a célebre escadaria de espelhos. Era aí, Galeria dos Espelhos e Sala do Trono, que Chanel - multiplicada por cem, sentada em um degrau, com a cabeça coberta pelo seu eterno chapéu de palha -, controlava, nos dias de apresentação das coleções, as ausências e abstenções. A seus pés, espalhados pelo tapete bege - já gasto -, os fiéis em uniforme de gala - tweeds creme e botões dourados - aplaudiam com vigor (...). Mademoiselle, enclausurada há vinte anos em um monólogo, do qual explodiam na superfície, em forma de bolhas, vitupérios e fórmulas mordazes, enquanto desliza sub-repticamente o lento fluxo de lembranças. Mademoiselle não suportava interrupções. A religião do pequeno tailleur. Com seus ritos: mangas cortadas por três vezes, tesouras sacrificadoras, estréias banhadas em lágrimas. Seus milagres: pela primeira vez, foi possível usar um terno dez anos seguidos sem ter ficado demodé, pois Chanel, que ditava a moda, decidira para o tempo. E um evangelho: 'É preciso sempre... Detesto as mulheres que...', etc..." Mais comment peut-on remplacer Chanel?, ELLE, 23 de julho de 1973
Por fim, basta citar as primeiras palavras que Ramon Esparza dirigiu aos jornalistas: "Não, na próxima terça-feira não ficarei na escadaria. Aliás, não quero ver ninguém. A tradição? Fui contratado pela empresa Chanel para fazer funcionar a maison e não para retomar a representação de um papel." ibid.

Pierre Bourdieu II

"(...) No caso da alta costura, a questão se coloca em termos bastante originais porque todo o aparelho de produção e circulação está orientado especificamente não para a fabricação de objetos materiais, mas - como mostra perfeitamente a estratégia dos costureiros que vendem suas criações (sob forma de licença) sem que eles mesmos produzam objetos -, para a produção do poder quase mágico, atribuído a um homem singular, de produzir objetos que são raros pelo simples fato de que ele os produz, ou melhor ainda, de conferir a raridade pela simples imposição da grife, como ato simbólico da marcação, a quaisquer objetos, inclusive não fabricados por ele.
A questão - 'Como será possível substituir Chanel?' - deverá ser entendida assim: como continuar produzindo Chanel - objeto simbólico, marcado com o signo da raridade pela assinatura - sem a presença física de Chanel - indivíduo biológico, único habilitado a assinar Chanel nos produtos Chanel. Como confeccionar produtos Chanel que não sejam cópias nem falsificações, como se diz na pintura? O problema existe porque pretende-se fazer sem Chanel aquilo que somente a Mademoiselle estava autorizada a fazer, isto é, produtos Chanel: não um simples trabalho de substituto, capaz de reproduzir produtos de acordo com cânones criados pelo criador, mas uma operação quase mágica, manifestada pela assinatura que, por definição, só pode ser operada na primeira pessoa. Fazer apelo a outro criador para salvar o capital é, de qualquer modo, expor-se a perdê-lo: que ele afirme, como se diz, sua personalidade ou se submeta, nestes dois casos, o que se perde é o direito à assinatura criadora. O criador substituto só poderá desempenhar sua função de criador de raridade e valor se vier a se conceber como criador de raridade e valor, isto é, dotado de valor como pessoa - e não somente como substituto ou delegado. Mas, ao fazê-lo, ele renuncia ao capital que está associado a uma pessoa, com estilo próprio de suas criações e a uma personagem com estilo de vida que contribui para produzir e perpetuar a fé em seu poder criador."

Pierre Bordieu I

Em 1972, o filósofo francês Pierre Bourdieu escreveu o ensaio O costureiro e sua grife - Contribuição para uma Teoria da Magia. É aqui que ele lança a pergunta:'como uma maison sobrevive à morte do criador?'. Não sei se é uma questão de tradução ou se ele escrevia em sociologuês apurado (foi professor da matéria no Collège de France), mas o texto é enrolado de ler. A idéia, no entanto, permanece atual.

"A morte do criador, que já tem levado muitas maisons, mesmo entre as maiores, a desapareceram (como Lucien Lelong, que fechou as portas em 1948, ou Jacques Fath, em 1954) ou sobreviverem apenas por alguns anos, constitui uma provação decisiva: diretor de uma empresa de produção de bens simbólicos, o costureiro fornece eficácia à alquimia simbólica na medida em que ele próprio garante, à maneira do artista, todos os aspectos da produção do bem dotado de uma marca, isto é, a produção material do objeto e a espécie de promoção ontológica que lhe é prodigalizada pelo ato da criação. Na maior parte das vezes, essa provação só poderá ser superada mediante a partilha, entre várias pessoas, das funções indivisas do criador: por um lado, o presidente geral ou um simples executivo remunerado; por outro, o 'responsável pela criação', título que reúne em uma magnífica aliança de palavras o vocabulário da burocracia racional, isto é, da delegação e do carisma que encontra em si seu próprio fundamento. Este criador substituto, espécie de vigário de gênio, deve - como seu título indica - enfrentar as exigências antitéticas de uma posição contraditória.
Os 'respnsáveis pela criação' têm sempre um itinerário complicado e retrógrado (diferentemente dos fundadores de maison): assim, Marc Bohan, oriundo da maison Piguet, volta a maisons mais antigas, como Molyneux e Patou, antes de entrar na maison Dior, em 1958; o mesmo acontece com Gérard Pipart, estilista que entra na maison Ricci, em 1962, com Michel Goma que ingressa na maison Patou, ou com Jean-François Crahay na maison Lanvin.
Estas exigências podem se revelar, no limite, insustentáveis, quando o criador deve criar, isto é, afirmar a unicidade insubistituível de seu estilo e, ao mesmo tempo, entrar na unicidade não menos insubstituível, mas que ele tem o encargo de substituir:
"Há três meses, Gaston Berthelot, nomeado de um dia para o outro responsável artístico da maison Chanel - em janeiro de 1971, depois da morte de Mademoiselle - foi rapidamente demitido. Alguma explicação oficial? Nenhuma: seu contrato não foi renovado. Comentário de bastidores: ele não teria conseguido impor-se. É preciso dizer que a discrição natural de Gaston Berthelot (...) foi fortemente encorajada não só por sua diretoria - nada de entrevistas, nem alegações ou promessas -, mas também pelos comentários de sua equipe diante de cada uma de suas proposições. Será que o modelo era conforme, fiel e respeitador? 'Para isso, não é necessário um modelista; pega-se os velhos tailleurs e recomeça-se...'. Mas, diante de uma nova saia ou de um bolso modificado: 'Mademoiselle jamais toleraria isso'." Mais comment peut-on remplacer Chanel?, ELLE, 23 de julho de 1973.

segunda-feira, 21 de abril de 2008

SISSI TV: Halston é o que há de novo na moda?



De olho nas colagens feitas com fita adesiva na parede brancas do ateliê - um apartamento-loja na rua Augusta, em São Paulo -, só desavisados não entenderiam o quanto os anos 1970 (aquele que tem o pé nos anos 1930) falam da moda de Andrea Garcia. Refs das musas da era do Studio 54, em NY - Bianca Jagger, entre elas - estão coladas na parede e em pastas arquivadas no pc. Filha de uruguaios, formada na Santa Marcelina e ex-Forum, ex-Walter Rodrigues, ex-Viva Vida (com Jum Nakao), Andrea toca agora a StudioPilar - o endereço para vestidos de festa do tipo simple glam. Roy Halston (Abril 23, 1932 – Março 26, 1990) é um de seus estilistas favoritos. E um dos seus livros constantes de consulta (Halston, Phaidon, 25 libras esterlinas). O retorno da marca - desfilada na semana de moda depois de Betsey Johnson e um dia antes de Marc by Marc Jacobs, essas coisas típicas de lá - deixou Andrea com o curiosômetro ligado. Aqui, ela comenta o que achou da coleção de inverno 08/09 e discute uma das coisas mais chave da moda pós-conglomerados: dá para ressuscitar uma maison seu criador? Para o próximo post, com a palavra de Pierre Bourdieu.


Ilustração de Darcy Penteado, capa da revista Jóia (31/07/1958)

Lady moderna - lição 1



Ilustração de Ruben Toledo: cubano, radicado em NY, casado com a estilista Isabel Toledo, ele endende tudo sobre uma garota lady à moda atual.

Eu adoro a idéia de que ser uma lady não significa ser um tonta. Ladies dizem 'não' - apenas escolhem fazer isso de uma maneira assertiva, sim, mas sem choro nem berro.

Recorri ao meu livrinho - As a lady would say, por Sheryl Shade, comprado numa das lojas mais wasp que eu conheço, a BrooksBrothers - para saber o que responder quando um convidado chez moi quer saber se pode trazer bagagens extras.

Sheryl aconselha:
Não diga:
- que petulância pedir uma ooisa dessas!
- certo, mas o extra traz comida extra.
- meu, nem pensar!

(por que sempre o 'não-diga' é tão absurdamente não-dizível?)

Mas diga:
- Adoraria que o 'fulano' viesse, mas tenho espaço apenas para oito convidados. Talvez numa próxima.

CORREIO FEMININO por Clarice Lispector

(há mais de quatro décadas e a forma pode ter mofado um pouco, mas o conteúdo é agora)

As roupas e o tipo

"Muito se tem dito a respeito das roupas. "O hábito faz o monge", é um provérbio muito antigo e bastante verdadeiro. No entanto, há muitas mulheres que, por uma razão ou outra, procuram se vestir em completa oposição a seu tipo físico e personalidade. Trata-se, ao que tudo indica, de um caso de conflito entre a verdadeira personalidade e a que desejaria possuir. Exemplifiquemos. Uma jovem muito tímida deseja aparecer, anseia por ser admirada e ocupar um lugar de destaque na admiração de todos. Essa jovem, um tipo delicado, fino, procura quebrar a harmonia de sua silhueta usando um vestido ousado, de cor e modelo contrastantes com seu tipo suave e delicado. Com essa preferência está demonstrando insatisfação consigo mesma, não por possuir um tipo de ingênua, mas porque não consegue atrair a atenção masculina.
Ela precisará mudar, sim, mas não as roupas, mas o seu eu, seu procedimento, seu modo de sentir as coisas. precisará, primeiro, adquirir confiança em si própria, cultivar o otimismo e abafar a vaidade e o espírito de prepotência que a domina... Esta jovem precisará compreender que, sendo natural e de acordo com sua própria natureza, agradará mais do que copiando gestos e atitudes de outras..."

CONSELHO DE Carmel Snow

editora da Vogue e diretora da Harper´s Bazaar, para quem quer trabalhar com moda:
"One cannot run fashion by Gallup pools, and it´s dangerous to try to. Whether you are planning to make fashion or sell it, photograph or promote it, you will have to keep it flexible and ready to take off at a moment´s notice on a new track. There is no room for prejudice or cliché.(...) The greatest treasure in a fashion career - if you have it, guard it carefully - is an open, adventurous mind. That is why fashion people are such good company. They always seem young in spirit." 1962, e valendo.

OS 10 MANDAMENTOS DA CHIC*

1. Saiba do que você gosta - e do que, definitivamente, não gosta
2. Vista-se para você mesma - jamais para outro qualquer
3. Respeite a sua idade
4. Considere suas curvas
5. Siga o dress code - dê importância para o local e para a ocasião
6. Use as roupas com confiança
7. Fique em paz com o dinheiro que você investe numa peça
8. Acredite no seu próprio estilo
9. Não seja escrava da última moda
10. Não tenha medo de quebrar as regras

*Harper´s Bazaar Great Style, que eu não sou moça de negar fonte!

sexta-feira, 18 de abril de 2008

A TEORIA DO cabelo



Roberto Cavalli, verão 2008: coque Belle Époque desestruturado pelo vento hippie. Feminino, com pescoço de fora (não tem nada mais sexy) e emoldurado pela sobreposição de colares. Soooooo much fun - e sem tintura!

Ontem, na aula de ioga privé, a instrutora me perguntou de que cor eu tingia meus cabelos. Eu estranhei porque, depois de muitas experiências - cor de fogo, luzes a ponto de ficar loira -, meu cabelo é mais natural do que algodão orgânico. Ou quase - me lembrei que, da última vez que cortei, fiz micro (micro mesmo!) mechas de loiro-mel. Mas elas foram feitas para mimetizar as luzes naturais do meu cabelo. Achei gozado ela supor que minha cor era de caixinha. E fiquei feliz de ter algo au naturel elogiado num planeta cada vez mais photoshopado e plasticizado. Não acho que a gente tenha de ter a mesma cara sempre, óbvio. Meu cabelo, aliás, oscila entre o ondulado, o cacheado e o falso liso (dependendo da minha dedicação e da vontade própria dele) e eu adoro olhar todo dia no espelho e ter uma surpresa. Também amo prender de jeitos diferentes, com pentes, presilhas, elásticos, grampinhos. Penteados são algo a ser ressuscitado nos rituais femininos de beleza (entre as idéias da passarela, minha favorita é a do verão 2008 Roberto Cavalli, um coque Belle Époque desmanchado, bagunçado pelos hippies anos 1970 - feminino, fácil de reproduzir e com efeito personalidade no ato!). Cabelos, eu pensei, falam muito mais sobre nossa intimidade com a gente mesma do que muitas outras coisas. E é bom que as mudanças aí sejam mais naturais mesmo - ressaltar uma qualidade que já existe com a tinta, mudar a textura com produticos... Fantasia mesmo, loucura radical, a não ser que a intenção seja passar a clara mensagem de insatisfação com a própria imagem ou o desejo de virar drag, melhor reservar para os sapatos. São eles que simbolizam nossa vontade de viajar mais longe. Cabelo serve para dizer quem a gente é - numa versão mais bonita e variada, sempre que possível.

quarta-feira, 16 de abril de 2008

The importance of being...

... Earnest, como escreveu Oscar Wilde. Na peça de um dos meus autores favoritos (acho perturbador a mãe dele, inconformada com o fato de ele ter nascido menino, tê-lo vestido de menina - quem sabe a história trágica dele vai entender o poder que a roupa tem), dois homens fingem se chamar Earnest - Ernesto, mas em trocadilho no inglês, sério - para impressionar suas garotas. Todos nós assumimos algo que não somos - complementamos ou dissimulamos nossa personalidade com acessórios, como nomes mais adequados ou roupas assim ou assado. Eis que agora mesmo encontrei uma resposta de ninguém menos que Christian Dior para a tentativa de ser na roupa (pense na atitude da mãe de Wilde), algo que não, necessariamente, se é. Data de 1957, ano em que ele morreu, uma década depois de desfilar o New Look. "Nessa era de máquinas, que preza a convenção e a uniformidade, a moda é o último refúgio do humano, do pessoal e do inimitável. Até mesmo as inovações mais escandalosas devem ser bem recebidas, mesmo que apenas nos protejam da pobreza e da mesmice." Então, eu fiquei pensando o seguinte: pode ser que o salto bêbado de Marc Jacobs, que eu postei aí embaixo, não vire um clássico e, portanto, nunca chegue a ter um nome próprio. Mas talvez a função dele seja única e exclusivamente nos tirar da zona de conforto, da mesmice, do igual-a-sempre-não-me-incomode. Please, disturb!

terça-feira, 15 de abril de 2008

De salto alto? Essa descrição não basta





Desfile de Antonio Berardi, inverno 08-09, e sapato Trompe l´Oeil, de Andre Perugia, 1937: qualquer semelhança talvez seja mera coincidência.



Salto abridor de rolha e pé-com-pé, ambos de Perugia: o surreal sempre andou lado a lado com a moda.




Sandálias de salto gaiola e Invisível, Salvatore Ferragamo: loucurinhas da década de 1940 que valem hoje, sim?




Salto de Marc Jacobs, coleção verão 08: sim, todo mundo já viu, mas alguém sabe como chamar esse salto bêbado? O nome só pega se a moda pega - sem nome, significa que foi só um delírio. Bem-vindo, sem dúvida, mas delírio, não?





Annabella, a razão do nome salto anabela, no dia do casamento com Tyrone Power, em 23 de abril de 1939 (daqui a 8 dias, 69 anos atrás!): tea dress típico da época, mas nada do salto inteiriço nos pés. Estes, só nas "férias" cariocas!


(Desculpem, estou numa fase introspectiva-livros e revendo/relendo coisas que a gente esquece que leu.) Enfim, fui devolver a bio de Carmen Miranda, por Ruy Castro, à prateleira e abri numa página qualquer. Buenas, nada mal para uma roleta russa, uma coisinha assim aleatória, já que saltos - ou a ausência deles - são a recentésima obsessão da moda.

Na biografia da mulher que infernizou o sapateiro para inventar as plataformas (e, assim, parecer mais alta do que os exíguos metro e meio) também descobrimos uma versão para o nome do salto anabela. Castro "culpa" a popularidade no Brasil da atriz francesa Annabella, que passou 40 dias circulando pelos salões da alta sociedade carioca acompanhada de Tyrone Power, galã número um da Fox, e de sapatos com saltos inteiriços. Annabella era o álibi do estúdio para dissipar rumores de que Tyrone seria homo, no máximo bi. (No ano seguinte, 1939, eles se casaram). Mas esse mês e meio entrou para nosso closet com o salto que as cariocas, na época, batizaram de salto Annabella.

Eu fico imaginando, nesses 2008 com sapatos que sofrem de crise de identidade (não são botas nem sandálias, não são sapatos nem chinelos - são tudo-ao-mesmo-tempo-agora), como vão chamar, numa única palavra, o salto bêbado de Marc Jacobs, a meia-pata esquizofrênica de Antonio Berardi? Já pensou você na ala nova de sapatos da Saks tentando descrever o que você quer comprar?

Parece que todo mundo entendeu o que o designer Bernard Figueroa disse na década de 1990: "Há muito espaço para aproveitar entre o calcanhar de uma mulher e o chão" - nesse caso, bem aproveitados com saltos que pareciam gravetos banhados a ouro. Mas eu desconfio que o autor original de saltos loucos - mas não mortais e impossíveis de calçar como os chapins (também chopines) venezianos do século 15 (lembra que a Sta. Ephigênia reprisou, no inverno 2007, esses tamancões feitos para as mulheres não caminharem, como se fossem uma espécie de cinto de castidade?) - tenha sido Andre Perugia. Se vale a máxima 'diga-me com quem andas e eu te direi quem és', os amigos de Perugia dizem tudo: George Braque, Elsa Schiaparelli... Esse francês se divertiu e foi surreal na sua área de fetiche maior: os pés femininos.

Dito isso, o que eu acho que vale a pena ver (e usar) de novo é a anabela F de Salvatore Ferragamo na sandália invisível (meu sonho de consumo, junto com os sapatos da Dorothy de O Mágico de Oz) e a sandália de salto gaiola da grife italiana - ambas do tempo em que Carmen fazia tchica-tchica-bum-tchi. Louquinhas, mas totalmente possíveis. E totalmente agora.

domingo, 13 de abril de 2008

O valor de uma roupa e otras cositas más

(Para um amiga ruivinha, que eu acredito que tinja o cabelo de crush só porque é a cor do Partidão - acho que um dia ela vai liderar uma nova coluna Prestes)

O Casaco de Marx - Roupas, Memória, Dor é pequenérrimo no tamanho (cabe numa minaudière), mas grande de fôlego, de insight e de poesia (obrigada, Rosane, por me indicar essa leitura muitos anos atrás!). Escrito por Peter Stallybrass, professor de Inglês e Literatura Comparada da Universidade da Pensilvânia, tem dois textos: A Vida Social das Coisas: roupas, memórias, dor e O Casaco de Marx. O primeiro é uma constatação linda sobre a importância das roupas como objeto não de status ou bláblá, mas de lembrança de si mesmo e de gente querida. O segundo - e é esse que eu dedico aqui para minha amiga vermelha - conta a história de um casaco de lã que Karl Marx, vivendo em Londres, usa não só para protegê-lo do frio, mas como mercadoria (o X da questão em O Capital). Stallybrass escreve:

"(...) O ano de 1852 foi mais um ano catastrófico para o lar de Marx. Nos primeiros meses do ano, Marx estava escrevendo O Dezoito de Brumário, uma tentativa para explicar os fracassos das revoluções de 1848 e o triunfo da reação. De 2 a 24 de janeiro ele esteve doente na cama, escrevendo com a maior das dificuldades. Mas ele tinha que escrever, uma vez que, juntamente com as doações de Engels e com aquilo que podia penhorar, essa atividade constituía a fonte de renda do lar, uma lar constituído de quatro crianças e três adultos. Na verdade, não se tratava apenas do fato de que Marx tinha que escrever; ele tinha que escrever jornalismo. Em junho de 1850, Marx tinha conseguido um passe de entrada para a sala de leitura do Museu Britânico e tinha começado a fazer a pesquisa que seria a base de O Capital. Mas para financiar esta pesquisa ele precisava escrever por dinheiro. Além disso, de qualquer forma, durante sua doença, ele não podia mais ir ao Museu. Mas quando se recuperou, ele queria gastar pelo menos algum tempo na Biblioteca. Ele não pôde fazê-lo. A situação financeira tinha se tornado tão desesperadora que ele tinha não apenas perdido o crédito com o açougueiro e o verdureiro, mas tinha sido obrigado a penhorar o seu casaco de inverno. No dia 27 de fevereiro, ele escreveu a Engels: "Há uma semana cheguei ao agradável ponto no qual não posso sair por causa dos casacos que tive de penhorar". Sem seu casaco de inverno, ele não podia ir ao Museu Britânico. Não penso que haja uma resposta simples para a causa pela qual ele não podia ir. Sem dúvida, não era aconselhável que um homem doente enfrentasse um inverno inglês sem um casaco de inverno. Mas os fatores sociais ideológicos eram, provavelmente, tão importantes quanto o frio. O salão de leitura não aceitava simplesmente qualquer um que chegasse a partir das ruas e um homem sem um casaco, mesmo que tivesse um passe de entrada, era simplesmente qualquer um. Sem seu casaco, Marx não estava, em uma expressão cuja força é difícil de reproduzir, "vestido em condições em que pudesse ser visto".
O casaco de inverno de Marx estava destinado a entrar e a sair da loja de penhores durante todos os anos 1850 e o início dos anos 1860. E seu casaco determinava diretamente que trabalho ele podia fazer ou não. Se seu casaco estivesse na loja de penhores durante o inverno ele não podia ir ao Museu Britânico. Se ele não pudesse ir ao Museu Britânico, ele não podia fazer a pesquisa para O Capital. As roupas que Marx vestia determinavam assim o que ele escrevia. (...)"

Na biografia de Maysa, lançada no ano passado, o jornalista Lira Neto conta uma história bem parecida envolvendo a cantora fossa-nova:

"(...) Como agravante, as finanças do casal não iam bem. Transações mal-sucedidas fizeram com que Miguel Azanza dilapidasse parte do patrimônio da família, deixando escorrer entre os dedos o que obtivera com a venda de ações da Star, fábrica de pistolas que fornecia armamento para a guarda civil espanhola e da qual seu pai era um dos maiores acionistas. para contornar a situação, Maysa, que ainda se ressentia de ter visto pilhas de dinheiro descendo pelo ralo da Guelmay, mais uma vez precisou penhorar o anel de brilhantes que havia ganho no noivado com André Matarazzo.
Quando não lhes restava outra alternativa senão rir das próprias adversidades, figiam se divertir, tentando adivinhar o paradeiro da jóia, a quem apelidaram de El Niño. Ele poderia estar na feira, talvez na companhia telefônica ou, quem sabe, nas mãos do senhorio a quem deviam aluguel. O anel propriamente dito jazia no cofre do banco de penhores. O jogo consistia em saber qual das dívidas recentes ele havia ajudado a cobrir. (...)"

ps.: nunca subestime o valor de uma roupa.